domingo, 16 de junho de 2013

Arcebispo de São Paulo menciona Festival Mundial de Liberdade Religiosa em artigo no Estadão

Justino e seus companheiros mártires

DOM ODILO P. SCHERER*
De 196 países avaliados recentemente, 131 não apresentaram sinais de perseguição religiosa; em outros 49 países, porém, verificaram-se muitos episódios de perseguição e violência contra os cristãos. Chama a atenção que essa violência acontece, geralmente, onde o Estado não é "laico" e deixa de assegurar a liberdade religiosa a todos os seus cidadãos, ou até impõe uma religião oficial a toda a população.

Esses dados impressionantes foram, de alguma forma, também trazidos a público e confirmados em recentes manifestações da Associação Internacional pela Liberdade Religiosa (Irla, na sigla em inglês), que realizou em São Paulo, entre os dias 23 e 25 de maio, um Festival Mundial de Liberdade Religiosa. Estranhamente, esses fatos graves têm escassa ressonância e espaço na opinião pública ocidental.

No dia 1.º de junho, a Igreja Católica recordou os mártires São Justino e seus companheiros. Nascido na Palestina de época romana, na hodierna Nablus, Justino foi um filósofo eclético que, na juventude, migrou por várias correntes filosóficas. Finalmente, abraçou a fé cristã, entendendo ter encontrado nela a verdade, que tanto buscava. No ano 165, sob o imperador Marco Aurélio, foi martirizado em Roma, onde abrira uma escola filosófica, com vários companheiros. As Atas dos Mártires narram seu martírio.

Presos sob a acusação de "heresia", por se recusarem a adorar o imperador e seus deuses oficiais, Justino e seus companheiros foram interrogados por Rústico, prefeito da cidade. Depois de arguir os acusados quanto às suas convicções, Rústico os ameaçou: "Agora vamos ao que interessa, aproximai-vos e, todos juntos, sacrificai aos deuses. Se não o fizerdes, sereis torturados sem compaixão". Diante da recusa firme dos cristãos, o prefeito sentenciou: "Os que não quiseram sacrificar aos deuses e obedecer à ordem do imperador, depois de flagelados, sejam levados para sofrer a pena capital". E, assim, Justino e seus companheiros foram torturados e decapitados.

O Cristianismo conheceu perseguição e martírio desde a sua primeira hora. O próprio Jesus Cristo morreu mártir e seus apóstolos, da mesma forma. Esclareço que, no sentido cristão, não é "mártir" quem se autoimola por uma causa, mas quem é morto por outros, por causa da sua fé. Foram muitos os mártires ao longo da história da Igreja. O papa João Paulo II constatava, na virada do milênio, que o século 20 foi o que teve o maior número de mártires.

Os cristãos continuam sendo o grupo religioso mais perseguido em todo o mundo. Se aqui me refiro apenas aos cristãos, não é por desconhecer que existem discriminações e violências também contra outros grupos religiosos. Há poucos dias, Silvano Maria Tomasi, observador permanente da Santa Sé na ONU, em Genebra, fez uma denúncia alarmante: mais de 100 mil cristãos têm sido assassinados anualmente em todo o mundo por razões ligadas, de alguma maneira, à sua fé.

O artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe que toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito inclui também a liberdade de mudar de religião ou de crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em privado.

Se Justino vivesse hoje, ainda correria o risco de perder a cabeça por causa de suas convicções religiosas e de ver crescendo o número de seus companheiros... Lamentavelmente, 65 anos depois da Declaração da ONU, o direito à liberdade religiosa ainda não é respeitado em muitas partes do mundo. Pelo contrário, adotam-se novas leis severamente restritivas, até mesmo contra a liberdade de consciência, que vetam a mudança de crença ou religião, sob a ameaça de pesadas sanções, inclusive a pena de morte.

Não cessou o cerceamento à liberdade religiosa com a superação dos regimes totalitários e antirreligiosos que, sobretudo no século 20, impediram a livre manifestação da fé religiosa de cristãos e não cristãos e tentaram manipular ou erradicar a religião, promovendo a perseguição e até a eliminação sistemática de quem ousasse professar publicamente a fé.

É comum que ideologias e regimes totalitários tendam a instrumentalizar a religião em seu proveito, ou a restringir a liberdade religiosa dos cidadãos, por considerá-la um empecilho aos seus propósitos.

Uma das formas sutis de perseguição religiosa é o tratamento preconceituoso e discriminatório dos praticantes de alguma fé religiosa, como se fossem cidadãos "desqualificados", com menos direitos e credibilidade, cujas convicções não devem ser levadas em consideração, ainda que não sejam sobre questões religiosas. Toleram-se até as convicções religiosas nos espaços da vida privada, mas nega-se a sua contribuição para o convívio social e a cultura.

Essa forma velada de preconceito e discriminação ocorre também em países do Ocidente, onde pessoas aderentes à fé religiosa precisam lutar por seus direitos civis e pelo respeito aos mais primários direitos humanos.

Por vezes, atribui-se de maneira primária à religião a culpa de conflitos e guerras e sugere-se a sua supressão, como fórmula para alcançar a paz. Não se percebe, neste caso, que muitos conflitos ditos "religiosos", de fato, não são motivados por questões religiosas, mas por ideologias políticas que instrumentalizam a religião para alcançar seus objetivos.

A liberdade religiosa e de consciência é um direito humano fundamental, que pode ser assegurado somente quando a postura do Estado é pautada pela verdadeira laicidade, que não é de intolerância nem discriminação, mas de garantia para que todos os cidadãos exerçam, sem impedimento, suas escolhas em relação à religião. 

 *É CARDEAL-ARCEBISPO DE , SÃO PAULO

Fontes: Estadão
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