Cássio Casagrande*
Uma empregada de uma pequena biblioteca municipal obteve na Justiça o direito à reintegração no emprego, porque havia sido despedida por se recusar a trabalhar aos domingos.
O processo fundamentou-se na alegação de discriminação religiosa. A autora da ação é uma bibliotecária de 54 anos que havia trabalhado para a municipalidade por longos doze anos, até que a determinação de abertura da biblioteca aos fins de semana chocou-se com sua inarredável convicção de que os domingos devem ser guardados. A reclamante ainda receberá uma indenização pelos danos decorrentes do despedimento, que correspondem à diferença entre o que ela percebia na biblioteca e o salário auferido no emprego que obteve após o desligamento. Para a autora da ação, no entanto, a grande recompensa foi conseguir retornar ao emprego, que ela considera “um presente de Deus”, porque lhe permite servir à comunidade.
O caso acima não foi decidido pela Justiça do Trabalho no Brasil, mas sim por um júri federal de Missouri, nos Estados Unidos. A autora da ação é Connie Rehm, uma ex-professora de matemática do ensino médio que freqüenta a igreja luterana. Para ela, o resultado de seu processo é uma vitória para qualquer empregado cujas convicções a respeito da necessidade de se guardar o domingo sejam desrespeitadas por imposições do empregador. Rehm foi defendida neste processo pelo mesmo escritório de advogados que esteve à frente do caso Terri Schiavo – a paciente com dano cerebral que no ano passado esteve no centro da discussão sobre o direito de morrer. Este escritório de advocacia patrocina causas semelhantes para a Christian Law Association.
A bibliotecária, indiferente à indenização que receberá, se pergunta:
“Qual o preço da minha liberdade religiosa? Quanto isto vale? Não é uma questão de poder dispor livremente sobre os Dez Mandamentos. Trata-se de ser livre para poder viver os Dez Mandamentos, e é o que o meu empregador estava me pedindo para não fazer.”
Nos Estados Unidos, os casos de reclamação por discriminação religiosa no trabalho são pequenos, porém significativos: 3,1% - das mais de 75.000 representações encaminhadas no ano de 2005 à Comissão de Igualdade de Oportunidades no Emprego (U.S. Equal Employment Opportunity Comission - EEOC).
Jim Paul, coordenador do Comitê de Direito do Trabalho e Emprego da Ordem dos Advogados de Missouri aponta uma tendência de aumento deste tipo de conflito:
“Reclamações contra discriminação religiosa são, definitivamente, um novo e promissor assunto. Inúmeras empresas e organizações estão operando de forma ininterrupta e mais dias por semana, de modo que, inevitavelmente, você acaba invadindo o domínio da vida pessoal dos trabalhadores, inclusive no que diz respeito às práticas e obrigações religiosas”.
Será que este tipo de processo teria a mesma recepção na Justiça do Trabalho no Brasil? As ações de reintegração no emprego por práticas discriminatórias de qualquer natureza eram raríssimas na Justiça do Trabalho. O quadro modificou-se na década de 1990. A partir de um precedente do TST em um caso de despedida discriminatória em decorrência de orientação política, no qual o autor foi reintegrado no emprego, a jurisprudência trabalhista consolidou-se no sentido de que o despedimento motivado por discriminação caracteriza-se como abuso do direito potestativo do empregador, levando à nulidade do ato demissional. O TST, a partir deste entendimento, já julgou inúmeros casos de discriminação, determinando a reintegração no emprego e o pagamento de indenizações por dano moral. Há farta jurisprudência, por exemplo, em relação à despedida discriminatória de portadores do vírus HIV, como também em decorrência de discriminação racial.
Durante o governo Fernando Henrique Cardoso foi editada a Lei 9029/95, que vedou de forma expressa a adoção de práticas discriminatórias no emprego, introduzindo formalmente na legislação o direito a readmissão no emprego e estabelecendo sanções administrativas ao empregador. No entanto, ainda não se tem notícia de decisões judiciais a respeito de discriminação religiosa no Brasil.
Poder-se-ia pensar que esta ausência de casos decorre de uma relativa homogeneidade das práticas religiosas no país, mas como é do conhecimento geral esta situação está mudando, sobretudo em decorrência do aumento expressivo dos fiéis das religiões pentecostais. Alguns ruídos decorrentes deste novo quadro de diversidade religiosa no trabalho já começam a ser sentidos.
No Rio de Janeiro, uma empresa cujo dono era um pastor evangélico foi denunciada ao Ministério Público porque só admitia trabalhadores da mesma confissão do proprietário, além de exigir que os empregados participassem de um culto na hora do intervalo.
Em Sobral, no Ceará, um supermercado foi denunciado também ao Ministério Público por uma empregada seguidora das “Testemunhas de Jeová”. A comerciária reclamou que havia sido afastada de suas atividades em razão da recusa em utilizar uma camiseta promocional criada para o período da festividade natalina.
Em audiência realizada no final de dezembro do ano passado, os representantes legais do supermercado confirmaram que ela foi afastada das funções desde 21 de novembro de 2006 e que, no período do afastamento, ela ficou sem receber sua remuneração.
O empregador defendeu que não havia como confeccionar fardamento sem a expressão "Natal Encantado" apenas para aquela empregada porque isso poderia gerar questionamentos dos demais trabalhadores. Também argumentaram que o remanejamento dela para outro setor seria impossível em razão das qualificações necessárias ou das diferenças salariais entre os cargos.
A empregada disse que aceitaria usar o fardamento, desde que sem a inscrição, e informou ter recebido convocação para retorno ao trabalho sob pena de ser configurado abandono de emprego. Neste caso, o Ministério Público do Trabalho conseguiu assinar um termo de compromisso com a empresa, que se obrigou a respeitar a objeção de empregados por motivos religiosos em situações como esta.
As informações sobre o caso Connie Rehm foram retiradas do site FindLaw, a partir de reportagem da jornalista Dana Fields, da Associated Press. As informações do caso da trabalhadora de Sobral são do site da Procuradoria Geral do Ministério Público do Trabalho.
* Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro, ex-advogado trabalhista e membro do CEDES – Centro de Estudos Direito e Sociedade (IUPERJ).
Nota: Embora esse texto tenha sido escrito há mais de cinco anos, no Brasil a questão da Liberdade Religiosa ainda é pouco compreendida e respeitada. De 21 a 25 de maio de 2013 aconteceu a I Semana Internacional de Liberdade Religiosa, que teve como um dos temas debatidos em vários simpósios e fóruns o seguinte tema: Liberdade Religiosa: uma Responsabilidade Social Corporativa, com desdobramentos para questões relacionadas oa trabalho e a liberdade religiosa.