Por Néviton Guedes
O título deste artigo já por si deveria provocar todos os nossos alarmes e cuidados.
Infelizmente, contudo, a conclusão de ausência de hierarquia entre direitos fundamentais — que é correta — acabou vulgarizando a ideia de que direitos fundamentais tão importantes — como a vida — podem ser preteridos sem maior consideração e de forma precipitada. A ideia de que o direito à vida, por exemplo, possa, em situações extremas, ceder diante de outros bens constitucionalmente protegidos não pode ser confundida com a certeza hoje já popularizada de que essa preterição possa ser promovida de forma imprudente e irrefletida.
Para ficar em exemplo conhecido, a afirmação genérica e abstrata de que o direito à liberdade e de autodeterminação da mulher prevaleceria sempre e sempre sobre o direito à vida no caso do aborto é uma dessas precipitadas generalizações que temos o dever constitucional de evitar. A vida pode ceder diante de outros direitos fundamentais — isso é certo —, mas apenas em situações excepcionalmente fundamentadas, em que a carga argumentativa se manifeste induvidosamente a favor de outros direitos fundamentais. Para nosso infortúnio, contudo, nesse terreno de colisões de direitos fundamentais, os casos de fácil e de evidente solução são menos comuns do que as respostas arbitrárias e ligeiras que acabam suscitando.
Para reafirmar a dificuldades dessas situações, permito-me referir a caso singular, bastante conhecido, a que me dediquei na minha tese de doutorado, em que uma senhora alemã, membro convicto de uma comunidade religiosa (Testemunha de Jeová), por ocasião do nascimento de seu quarto filho, depois de complicações no parto e de uma anemia profunda, foi aconselhada pelos médicos a internar-se num hospital para realizar uma transfusão de sangue. Ela, entretanto, manifestou-se de forma reiterada e peremptória contra a internação no hospital, sendo que, ao invés do tratamento médico que lhe era indicado, apenas orou por sua saúde com os irmãos de sua comunidade religiosa, tornando, então, impossível a transfusão de sangue. Em virtude disso, a mulher, que se manteve consciente até o último instante, acabou falecendo[1].
Seu marido, compartilhando as mesmas convicções religiosas e com a sincera crença de que a paciente poderia recobrar a saúde se orasse a Deus pedindo ajuda, negou-se a convencê-la no sentido de realizar a transfusão, sendo por isso processado e condenado por omissão de socorro (unterlassene Hilfeleistung), conforme previsão do parágrafo 330, c, do Código Penal alemão (StGB). O caso passou a ser conhecido como Gesundbeter (aquele que reza pela saúde) e foi submetido ao Tribunal Constitucional alemão, precisamente, pelo marido da paciente, que interpusera recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde) contra a condenação imposta pela justiça ordinária.
Graças à sua legítima convicção religiosa (concordemos ou não), que lhes autorizava a se manifestar e a se conduzir de acordo com sua fé, marido e mulher, como testemunha de Jeová, estavam convencidos da ideia de que até mesmo uma doença congênita poderia ser mais adequadamente curada pelo poder da oração. Além disso, com o preço da própria vida e com o sofrimento de seus filhos, acatavam literalmente as prescrições bíblicas, do Velho Testamento, que expressamente proibiam os fiéis de comerem ou receberem sangue humano.
Por conta desses fatos, o 1º Senado do Tribunal acabou por tomar uma decisão especialmente significativa no que respeita às limitações ao direito fundamental da liberdade de crença e o direito à vida[2]. Verificando que ocorrera, no caso, uma colisão entre a liberdade de religião e outros bens constitucionais (vida, saúde, etc.), o Tribunal, buscando encontrar uma solução constitucionalmente adequada, acabou por proceder a uma ponderação de bens em muitos pontos modelar[3]. Entendamos melhor os fatos.
O Tribunal Constitucional julgou que a decisão da justiça ordinária, que condenara o recorrente, interferira de forma inadmissível na liberdade de consciência e de crença religiosa que é conferida aos cidadãos alemães (artigo 4, 1, de sua Lei Fundamental)[4]. Para chegar a essa conclusão, o Tribunal partira do pressuposto de que a liberdade de crença não é apenas garantida a membros de igrejas ou comunidades religiosas tradicionais, mas também àqueles que aderem a outras associações religiosas menos conhecidas. Em consequência disso e do mandamento da neutralidade religiosa e ideológica do Estado, deixou expresso que a força do número de uma determinada comunidade ou sua relevância social não deve ter influência sobre as decisões dos poderes públicos. Portanto, num Estado que prestigia seriamente a dignidade da pessoa humana e a autodeterminação dos indivíduos como valores que vinculam toda comunidade nacional, deve-se assegurar ao indivíduo, através da liberdade de crença, um espaço jurídico livre da intervenção estatal, no qual ele possa desenvolver a forma de vida que bem atenda às suas convicções religiosas[5].
Como consequência lógica dos pressupostos que assentara, o Tribunal concluiu, então, que a liberdade de crença é mais do que a simples tolerância religiosa, isto é, mais do que apenas suportar as convicções religiosas ou não-religiosas de outros membros de uma comunidade, ou apenas a liberdade (interior) de acreditar ou não acreditar. Mais do que isso, ela compreenderia também a liberdade (exterior) de manifestar, confessar e divulgar as suas convicções religiosas. Nela também se garante o direito dos cidadãos de orientar todas as suas condutas em obediência aos ensinamentos de sua crença e de agir em conformidade com suas convicções[6].
O Tribunal afirmou ainda que não são apenas as convicções que se baseiam em disposições imperativas de uma determinada crença que são protegidas pela liberdade de crença, pois ela também protege convicções religiosas que não signifiquem obrigatoriamente, numa concreta situação de vida, uma exclusiva reação segundo modelos previamente dispostos em enunciados imperativos de convicção religiosa, assegurando, pois, aos indivíduos a possibilidade de uma reação segundo os melhores e mais adequados meios para superar uma determinada situação concreta de vida, tudo conforme a posição de sua crença[7].
O Tribunal Constitucional, entretanto, ainda que estabelecesse, na decisão proferida no caso Gesundbeter, o âmbito da liberdade de religião nos termos mais amplos possíveis, acrescentou, contudo, que essa liberdade não é garantida sem qualquer limite (aliás, nenhum direito fundamental o é).
De fato, conquanto a liberdade de crença religiosa seja, segundo a interpretação do Tribunal Constitucional, um direito que não se submete a uma reserva de lei restritiva[8], ainda assim, também esse direito fundamental, como os demais direitos fundamentais garantidos sem reservas de limites legais, submete-se aos limites imanentes à sua própria inserção no sistema de direitos fundamentais instituído pela Constituição.
Assim, um conflito a ser considerado no quadro da liberdade de crença deverá ser resolvido segundo critérios da ordem de bens e valores fundamentais dispostos na Constituição e sob a consideração da unidade dessa ordem fundamental. Como parte do sistema de bens e valores fundamentais, é a liberdade religiosa submetida ao dever de tolerância, especialmente relacionada ao princípio da dignidade da pessoa humana, disposto no artigo 1, 1 da Lei Fundamental alemã, que orienta, consoante o entendimento do Tribunal Constitucional, como valor maior, toda a ordem constitucional alemã[9].
Segundo o Tribunal, os fundamentos acima expostos excluem que ações ou formas de conduta, que decorram de uma determinada crença, possam ser submetidas, sem mais, a sanções que o Estado estabeleça para tais condutas. A força de difusão da liberdade religiosa, disposta no artigo 4, 1 da Lei Fundamental alemã, tem aqui a eficácia de poder influir no tipo e na medida de sanções que possam ser constitucionalmente admissíveis como uma imposição estatal[10].
Portanto, voltando ao caso concreto, segundo o Tribunal, o indivíduo que, numa situação concreta, permite-se determinar por uma ação ou omissão segundo sua convicção religiosa, pode entrar em conflito com as visões morais predominantes e as normas jurídicas vigentes na sociedade. Se ele, assim agindo, segundo a interpretação predominante, realiza uma conduta penalmente tipificada, então, por força da liberdade religiosa (artigo 4, 1 da LF alemã), deve questionar-se o aplicador da norma se, sob as circunstâncias específicas do caso, uma punição, no sentido jurídico-penal, pode mesmo lhe ser imposta[11].
Por isso, segundo o Tribunal — como se vê, depois de uma autêntica ponderação de bens —, nessa conformação específica do caso, não importa em que medida, a sanção penal como instrumento de proteção de outros bens jurídicos, sob nenhum aspecto (retribuição, prevenção, ressocialização do agente) afigurar-se-ia uma sanção adequada, uma vez que o dever resultante da liberdade religiosa, de que todos os poderes públicos tomem a sério as fronteiras bastante amplas da liberdade de convicção religiosa, tem como corolário a recusa do direito penal em todos os casos nos quais um conflito concreto entre uma obrigação jurídica resultante da compreensão geral e um dever de crença pessoal coloque o indivíduo — considerado à luz da norma penal um criminoso — numa aflição íntima e, mais especificamente, sob uma ameaça que se deva considerar como reação social excessiva e por isso mesmo violadora de sua dignidade humana[12].
Aplicando o conjunto de sua argumentação ao caso aqui analisado, o Tribunal chegou à conclusão de que os tribunais inferiores ao confirmar a aplicação do parágrafo 330 do Código Penal alemão ao recorrente, por suposta prática de omissão de socorro, teriam desconsiderado a eficácia irradiadora que a liberdade religiosa (artigo 4, 1 da LF alemã), no presente caso, deveria ter sobre a interpretação e aplicação do referido dispositivo legal. O recorrente, portanto, não poderia ser censurado por ter se omitido de tentar, contra sua própria convicção religiosa, convencer sua esposa a renunciar suas próprias convicções — que, aliás, estavam totalmente de acordo com as dele, recorrente. Ele compartilhava com ela a convicção de que a oração a Deus (das Gebet zu Gott) seria o melhor caminho para a sua cura, pelo que o Tribunal interpretou que sua conduta e a de sua mulher eram uma profissão de fé própria de sua crença comum. À luz de todas essas considerações, assentou ainda o Tribunal que o recorrente não teria a obrigação de colocar a sua decisão no lugar da adotada por sua mulher. Isso apenas seria de se considerar, afirma o Tribunal, num manejo de ideias muito próprio aos juízos de ponderação de bens (que se realizam sempre apoiados nas específicas circunstâncias de fato e de direito do caso), se, numa eventual configuração diversa dos fatos, a esposa do recorrente não mais pudesse conscientemente decidir por si mesma, mas, como se viu, ela manteve-se consciente até o último instante[13].
Assim, como se viu, mesmo afirmando, nesse caso extraordinário, a possibilidade de uma prevalência da liberdade religiosa sobre o direito à vida, o Tribunal apenas o fez em consideração a condições e circunstâncias absolutamente extraordinárias, deixando claro que, em outras circunstâncias, como seria o envolvimento de incapazes, ou de pessoas que, por qualquer razão não pudessem, em contemporaneidade aos fatos, manifestar sua vontade, o direito à vida haveria de prevalecer.
Em síntese, diante de condições tão específicas do caso concreto, ainda que afirmando a liberdade religiosa, o Tribunal, quando o fez, tomou a sério, na maior medida possível, a importância do direito à vida.
[1] MENZEL, Jörg (org.). Verfassungsrechtsprechung. Tübingen: Mohr Siebeck, 2000, 692 p (os fragmentos da decisão aqui referida foram, em sua quase totalidade, trabalhados a partir deste ótimo repositório de jurisprudência organizado por J. Menzel, que conta, além de tudo, em cada decisão escolhida, com um ótimo comentador).
[2] J. Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 186.
[3] J. Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 188.
[4] BVerfGE 32, 98 (106). J. Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 186 eseguintes.
[5] J. Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 186 eseguintes, BVerfGE 32, 98 (106); sobre o mandamento da neutralidade religiosa e ideológica do Estado, confira-se BVerfGE 18, 385 (386); 19, 206 (216); 24, 236 (246).
[6] BVerfGE 32, 98 (106). Ver também BVerfGE 12, 1 (3); 24, 236 (246). J. Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 186 eseguintes.
[7] BVerfGE 32, 98 (107). J. Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 186 eseguintes.
[8] Os direitos fundamentais em que a própria Constituição estabelece expressamente a possibilidade de sua restrição por intermédio de lei são designados pela doutrina direitos sujeitos a reserva de lei restritiva (Cfe. Gomes Canotilho. Direito Constitucional, p. 1260). A doutrina tem ainda diferenciado entre a reservas simples de lei (einfachen Gesetzesvorbehalten) e a reservas qualificadas de lei (qualifizierten Gesetzesvorbehalten). Nas reservas simples estão legitimadas as regras gerais para a intervenção no direito, ou seja, a Constituição não estabelece pressupostos específicos para a restrição legal que ela autoriza; Nas reservas qualificadas, a Constituição impõe pressupostos especiais para a admissibilidade da intervenção no direito fundamental (Gerrit Manssen. Grundrechte, p. 36 e 37). A distinção, contudo, entre reserva simples e reserva qualificada tem perdido significado na medida em que, mesmo se cuidando de reserva simples, a lei restritiva se submete ao princípio da proporcionalidade, com o que deve o legislador, como se sabe, atender a pressupostos adicionais, já que passa a ter que demonstrar, caso a caso, a utilidade/adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito de sua intervenção. Cfr. J. Ipsen. Staatsrecht II (Grundrechte), p. 51. Se considerarmos o exemplo da Constituição portuguesa, pode-se ainda acrescentar que esses pressupostos - próprios do princípio da proporcionalidade - estão estabelecidos, além de outras restrições às restrições, no artigo 18º. Cfr. Vieira de Andrade. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, p. 293 e 296; Gomes Canotilho e Vital Moreira. Constituição da República Portuguesa Anotada, p. 151 e seguintes; Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional (Tomo IV), p. 337 e seguintes.
[9] BVerfGE 32, 98 (108). Ver também BVerfGE 6, 32 (41); 27, 1 (6); BVerfGE 30, 173 (193).
[10] BVerfGE 32, 98 (108).
[11] J. Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 186 eseguintes.
BVerfGE 32, 98 (108/9).
[12]J. Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 186 eseguintes.
BVerfGE 32, 98 (109).
[13] BVerfGE 32, 98 (109 e 110).
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Fontes: Consultor Jurídico
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