Antônio de Castro Mayer
Bispo de Campos
Em matéria de liberdade religiosa na ordem
civil, três pontos capitais, entre outros, são absolutamente claros na tradição
católica:
1. Ninguém pode ser obrigado pela
força a abraçar a fé;
2. O erro não tem direitos;
3. O culto público das religiões
falsas pode, eventualmente, ser tolerado pelos poderes civis, em vista de um
maior bem a obter, ou de um maior mal a evitar, mas de si deve ser reprimido,
mesmo pela força, se necessário.
É o que se depreende, por
exemplo, dos seguintes documentos:
PIO IX, Encíclica "Quanta
Cura":
"E contra a doutrina da
Sagrada Escritura e dos Santos Padres, (os seguidores do naturalismo) não temem
afirmar que "o melhor governo é aquele no qual não se reconhece ao poder
político a obrigação de reprimir com sanções penais os violadores da religião
católica, a não ser quando a tranqüilidade pública o exija". Desta idéia
absolutamente falsa do regime social não receiam passar a fomentar aquela
opinião errônea e mortal para a Igreja Católica e a salvação das almas, chamada
por nosso predecessor de feliz memória, Gregório XVI, loucura, a saber que
"a liberdade de consciência e de cultos é um direito próprio de cada
homem, que deve ser proclamado e garantido em toda sociedade retamente
constituída (BAC, Doutrina Pontifícia, II documentos políticos, 1958, p.
8)".
"Syllabus" de PIO IX:
"77. Na nossa época não é
mais necessário que a religião católica seja considerada como a única religião
do Estado, excluídos os outros cultos.
"78. Por isso é de louvar
que em regiões católicas, se tenha providenciado por lei, que aos imigrantes
naquelas regiões se permita o culto público próprio deles." (BAC, ib. p.
37).
LEÃO XIII, Encíclica
"Libertas":
"Portanto, na sociedade
humana, a verdadeira liberdade não consiste nisto que faças o que te agrada, de
onde surgiria uma grande confusão e perturbações que terminariam na destruição
do próprio Estado; e sim nisto que, através das leis civis possas mais
facilmente viver de acordo com as prescrições da lei eterna (BAC, ib. p. 234).
"Essa mesma liberdade, se
considerada nos Estados, isto precisamente deseja, que o Estado não preste a
Deus culto algum, ou queira que publicamente seja ele prestado; nenhum deve ao
outro ser preferido, mas todos devem ser considerados em igualdade de direito,
sem mesmo se tomar em conta o povo, caso se trate de povo católico (BAC. p.
244)".
"Deus é que fez os homens
sociáveis e os colocou num grupo de seus semelhantes, para que o que sua
natureza precisasse, e eles sozinhos não pudessem obter, encontrassem no
convívio social. De onde, é preciso reconhecer a Deus como criador da sociedade
civil, enquanto é sociedade, e, em conseqüência reconheça ela e lhe cultue o
poder e domínio. Condena, pois, a justiça, condena a razão, que o Estado seja
ateu, ou, o que termina no ateísmo, se mostre indiferente para as várias, como
se diz, religiões, e a todas promiscuamente conceda os mesmos direitos.
"Como, pois, é necessário
que haja na Sociedade Civil a profissão de uma religião, deve professar-se a
única que é verdadeira, e que, sem dificuldade, especialmente nas sociedades
católicas, se reconhece porquanto nela são visíveis os caracteres de sua
verdade (BAC. ib. p. 244/5)".
"É, realmente, o direito uma
faculdade moral que, como já dissemos e convém repetir com insistência, não
podemos supor concedida pela natureza, de igual modo, à verdade e ao erro, à
virtude e ao vício. Existe o direito de propagar na sociedade, com liberdade e
prudência, tudo o que é verdadeiro e tudo o que é virtuoso, para que o maior
número de cidadãos possa participar da verdade e do bem. As opiniões falsas,
porém, a pior espécie de mal do entendimento, e os vícios corruptores do
espírito e da moral pública devem ser reprimidos pelo poder público para
impedir sua paulatina propagação, sumamente nociva para a mesma sociedade. Os
extravios de um espírito silencioso que, para a multidão ignorante, se
convertem facilmente em verdadeira opressão, devem ser punidos pela autoridade
das leis não menos que os atentados da violência cometidos pelos fracos. tanto
mais quanto é impossível, ou dificílimo, à parte, sem dúvida, mais numerosa da população,
precaver-se contra os artifícios de estilo e as sutilezas da dialética,
principalmente quando tudo isso lisonjeia as paixões (BAC. ib. p.246-7).
"Por estes motivos, não
concedendo direito senão àquilo que é verdadeiro e honesto (a Igreja) não condena
que a autoridade pública permita alguma coisa que se distancie da verdade e da
justiça, em vista de um mal a evitar ou de conseguir manter um bem". (BAC.
ib. p.253)
PIO XII, Alocução "Ci
Riesce":
"Uma outra questão
essencialmente diversa é: se numa comunidade de Estados possa, ao menos em
determinadas circunstâncias, estabelecer-se como norma que o livre exercício de
uma crença e de uma prática religiosa ou moral, as quais têm valor em um dos
Estados-membros, não seja impedido em todo o território da comunidade por meio
de leis ou providências coercitivas estatais. Em outros termos, pergunta-se se
o "não impedir" ou seja, a tolerância, seja permitida nestas
circunstâncias, e, portanto, a positiva repressão não seja sempre obrigatória.
"Há pouco aduzimos a
autoridade de Deus. Pode Deus, se bem que lhe seria possível e fácil reprimir o
erro e os desvios morais em alguns casos, escolher o "não impedir",
sem entrar em contradição com sua perfeição infinita? Pode acontecer que, em
determinadas circunstâncias, Ele não dê aos homens ordem nenhuma, não imponha
dever nenhum, não conceda sequer direito algum de impedir e de reprimir o que é
errôneo e falso? Um exame da realidade dá uma resposta afirmativa. Ela mostra
que o que é errôneo e pecado se encontram no mundo em larga medida. Deus os
reprova; não obstante os deixa existir. Daí a afirmação: o desvio moral e
religioso deve ser sempre impedido, quando é possível, porque a tolerância é em
si mesma imoral — não pode ter direito na sua totalidade incondicional. Por
outro lado, Deus não deu nem sequer à autoridade humana um tal preceito
absoluto e universal, nem no campo da fé nem da moral. Não conhecem tal
preceito nem a convicção comum dos homens, nem a consciência cristã, nem as
fontes da Revelação, nem a prática da Igreja. Para omitir aqui outros textos da
Sagrada Escritura que se referem a esse assunto, Cristo na parábola da cizânia
deu a seguinte advertência: Deixai que no campo do mundo a cizânia cresça junto
com a boa semente por causa do bom grão. O dever de reprimir os desvios morais
e religiosos não pode, portanto, ser uma última norma de ação. Ele deve estar
subordinado a normas mais altas e mais gerais, as quais em algumas
circunstâncias permitem, e mesmo fazem talvez aparecer como partido melhor o não
impedir o erro, para promover um bem maior.
"Assim, se esclarecem os
dois princípios, dos quais é preciso deduzir, nos casos concretos, a resposta à
gravíssima questão do jurista, do homem político e do Estado soberano católico,
com relação a uma fórmula de tolerância religiosa e moral do conteúdo supra
indicado, a tomar-se em consideração para a Comunidade dos Estados.
"Primeiro: o que não
corresponde à verdade e à norma moral, não tem objetivamente nenhum direito nem
à existência, nem à propaganda, nem à ação. Segundo: o não impedi-lo por meio
de leis estatais e de disposições coercitivas pode, não obstante, ser
justificado no interesse de um bem superior e mais vasto" (AAS. 1953, p.
798-9. BAC, ib. p. 1013).
"Quanto à segunda
proposição, isto é, à tolerância, em determinadas circunstâncias, a suportar
mesmo nos casos em que se poderia proceder à repreensão, a Igreja já em atenção
àqueles que em boa fé (embora errônea mas invencível) são de opinião diversa —
viu-se induzida a agir e agiu de acordo com a tolerância, depois que, sob
Constantino Magno e os outros imperadores cristãos, se tornou Igreja e Estado,
sempre à vista de mais altos e superiores motivos; assim faz hoje e também no
futuro encontrar-se-á diante da mesma necessidade. Nesses casos singulares a
atitude da Igreja é determinada pela tutela e pela consideração do bem comum da
Igreja e do Estado em cada
Estado, de um lado, e, de outro, do bem comum da Igreja
universal, do reino de Deus sobre o mundo todo" (AAS. ib. p. 801. BAC. ib.
p. 1015) [1].
*
Não se coaduna com os documentos
que acabamos de citar, a doutrina da "Dignitatis Humanae" sobre esta
matéria. Com efeito, no no.2, lemos:
"Este Concílio Vaticano
declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade
consiste nisto que todos os homens devem estar imunes de coação, tanto da parte
de pessoas particulares como de grupos sociais e de qualquer poder humano, e
isto de maneira que, em matéria religiosa, nem se obrigue a ninguém a agir
contra sua consciência, nem se impeça que proceda de acordo com ela em privado
como em público, sozinho ou associado a outros, dentro dos limites
devidos."
O texto é claro, e, a rigor,
dispensa comentários. Há, segundo a declaração, um verdadeiro direito de todos
em relação a todos: indivíduos, grupos e Estado.
Note-se, portanto, que a
Declaração não considera situações concretas — ainda que muito freqüentes — que
aconselhariam a permissão, a tolerância do culto falso. Pelo contrário, o texto
prescinde de fatos concretos, e estabelece como princípio QUE TODO HOMEM TEM O
DIREITO DE AGIR DE ACORDO COM A PRÓPRIA CONSCIÊNCIA, em particular ou em
público, em matéria religiosa. [2]
Os limites à liberdade religiosa
estabelecidos pela Declaração ("dentro dos devidos limites") não são
suficientes, à luz do ensinamento tradicional dos Papas, para escoimá-la dos
defeitos apontados [3].
Logo adiante, o texto continua:
"Este direito da pessoa
humana à liberdade religiosa deve ser reconhecido na ordenação jurídica da
sociedade, de maneira a que chegue a converter-se em direito civil (Dec. Lib.
Hum., no. 2).
O texto é claro. O motivo pelo
qual a Declaração almeja que a liberdade religiosa, nos termos indicados, se
converta em direito civil, consiste em que já antes de qualquer disposição
legal teria o homem esse direito. Tratar-se-ia, portanto, de verdadeiro direito
natural [4]. Ora, esse princípio opõe-se ao ensinamento dos Papas anteriores.
O que causa perplexidade é o fato
de que a "Dignitatis Humanae" não apenas defende a liberdade
religiosa em termos que destoam da Tradição, mas afirma "ex professo"
— embora sem aduzir provas — que sua posição não se choca com os ensinamentos
tradicionais:
"Pois bem, como a liberdade
religiosa, que exigem os homens para o cumprimento de sua obrigação de prestar
culto a Deus, se refere à imunidade de coação na sociedade civil, deixa íntegra
a tradicional doutrina católica sobre a obrigação moral dos homens e das
Sociedades, quanto à verdadeira religião e a única Igreja de Cristo" (no.
1).
Ora, a tradição doutrinária
católica sobre o dever moral dos homens e das sociedades em relação à Igreja
Católica, sempre ensinou que a religião verdadeira deve ser favorecida e
amparada pelo Estado, enquanto o culto público e o proselitismo das religiões
falsas devem ser impedidos, se necessário pela força (embora possam,
eventualmente, ser toleradas em atenção a determinadas circunstâncias
concretas). E isso, a tradição doutrinária católica sempre ensinou que é um
dever moral, no sentido exato do termo. É algo que as sociedades, como
criaturas de Deus, devem, de maneira absoluta, à religião verdadeira.
No número 2 da "Dignitatis
Humanae", lemos:
"De acordo com sua dignidade
[5] todos os homens, porque são pessoas, a saber, dotados de razão e vontade
livre, e, portanto, elevados pela responsabilidade pessoal, são impelidos por
sua própria natureza e também por uma obrigação moral a buscar a verdade, em
primeiro lugar, a que diz respeito à Religião. Estão igualmente obrigados a
aderir à verdade conhecida e a ordenar toda sua vida de acordo com as exigências
da verdade. Não podem, no entanto, satisfazer a esta obrigação, de maneira
consentânea à sua própria natureza a não ser que gozem da liberdade psicológica
e ao mesmo tempo da imunidade de coação externa. O direito à liberdade
religiosa não se funda, pois, numa subjetiva disposição da pessoa, e sim na sua
própria natureza. De onde, o direito a esta imunidade persevera mesmo naqueles
que não satisfazem à obrigação de buscar a verdade e de a ela aderir; e seu
exercício não pode ser impedido, desde que se ressalve a justa ordem
pública".
Vê-se, pois, que a Declaração não
reivindica a liberdade religiosa apenas para os adeptos de outras religiões,
mas para todos os homens. Portanto, mesmo para os que não abraçam religião
nenhuma e para os que negam a existência de Deus. Também estes, segundo a
"Dignitatis Humanae", podem professar publicamente os seus erros e
fazer propaganda de sua irreligiosidade. Não vemos como possa a Declaração
achar que não se opõe à tradição católica esse estranho "direito" de
proselitismo ateísta.
Em abono de seu conceito de
liberdade religiosa, a Declaração conciliar alega alguns textos pontifícios.
São eles: a Encíclica "Pacem in Terris" de João XXIII, AAS. 1963, p.
260-1; a Radiomensagem de Natal de 1942, de Pio XII, AAS. 1943, p. 19; a
Encíclica "Mit Brennender Sorge" de Pio XI, AAS. 1937, p. 150; e a
Encíclica "Libertas" de Leão XIII, 8, 1888, p. 237-8.
Analisemos brevemente esses
quatro textos pontifícios.
O da Encíclica
"Libertas" de Leão XIII, assim reza:
"Também se inculca muito a
liberdade que chamam de consciência: a qual se se entender no sentido de que a
cada um seja lícito, segundo seu alvedrio cultuar a Deus ou não cultuá-lo, os
argumentos arrolados acima são bastantes para convencer. — Mas, pode também
entender-se neste sentido de que seja ao homem lícito na sociedade seguir e
executar, sem impedimento algum, a vontade de Deus e seus mandamentos. Esta é a
verdadeira, a liberdade digna dos filhos de Deus que defende honestissimamente
a dignidade da pessoa e isenta de qualquer violência ou injúria: ela foi sempre
desejada e muito estimada pela Igreja (o.c. p. 202)".
Pode este sentido constituir uma
genuína defesa da liberdade religiosa no sentido de imunidade de coação externa
para o seguidor de qualquer religião? A expressão "nulla re
impediente" dá a esse texto o significado de uma liberdade religiosa no
sentido indicado?
O sentido real do texto não abona
semelhante interpretação. Com efeito, falando da liberdade para seguir a
vontade de Deus e executar suas ordens, o texto coloca frente à frente o homem
de um lado, e do outro a vontade de Deus e suas ordens. E pede para o homem a
faculdade de, sem impedimentos, atender a esta vontade e a estas ordens.
Entende-se desde logo que o texto está tratando da vontade de Deus e de suas
ordens como oficial e objetivamente se apresentam. Aliás, a interpretação
favorável ao texto da "Dignitatis Humanae" seria de tal modo oposta a
todo o conjunto da Encíclica, que é difícil compreender como possa ter
prevalecido no texto conciliar. Leão XIII, que acabara de defender a
"repressão" contra os que oralmente ou por escrito divulgam o erro
(o.c. p. 196) não poderia agora contradizer-se!
O sentido da liberdade que Leão
XIII aí defende é claro: como o texto mesmo diz, trata-se do direito de
"seguir a vontade de Deus e de cumprir seus preceitos", de acordo com
a "consciência do dever". Essa liberdade, segundo a mesma Encíclica,
tem "por objetivo um bem conforme à razão (n.6; cfr. nn. 6.9); não se opõe
ao princípio de que a Igreja só concede direitos "àquilo que é verdadeiro
e honesto" (n.41); e é qualificada como "legítima e honesta"
(n.16), por oposição à dos liberais radicais ou moderados.
Ademais, o contexto próximo do
tópico da "Libertas" que estamos analisando realça ainda mais o seu
verdadeiro sentido, que não é aquele que a "Dignitatis Humanae" lhe
atribui.
Com efeito, a Comissão do
Secretariado para a União dos Cristãos, citando o texto em análise (ver
opúsculo "Schema Declarationis de Libertate Religiosa", 1965, p. 19)
transcreveu apenas o tópico que reproduzimos acima. Se essa citação se tivesse
estendido por mais umas poucas linhas, logo se veria que o tópico não diz
respeito à liberdade religiosa no sentido de imunidade de coação externa contra
a difusão das religiões falsas. Pois, a seguir, a "Libertas" diz:
"Este gênero de liberdade os
Apóstolos reivindicaram constantemente, os Apologistas sancionaram em escritos,
os Mártires, em ingente número consagraram com seu sangue (o.c. p. 202)".
Ora, a liberdade religiosa, no
sentido de imunidade de coação externa para as religiões falsas, a própria
"Dignitatis Humanae" não a defende como ensinada expressamente pelos
Apóstolos, mas declara apenas que "tem raízes na revelação divina".
Como poderia, pois, Leão XIII dizer que os Apóstolos constantemente
reivindicaram para si essa liberdade?
E, sobretudo, como poderia Leão
XIII dizer que "uma multidão inumerável de mártires" consagraram essa
liberdade com seu sangue? Não temos notícia de nenhum mártir que tenha morrido
para defender o "direito" dos nicolaítas, dos gnósticos, dos arianos,
dos protestantes ou dos ateus, de propagarem seus erros. E, sobretudo, seria
singular falar numa "multidão de mártires" que tenham derramado o seu
sangue com tal intenção. Torna-se, pois, evidente que a referida passagem da
"Libertas" não diz respeito à liberdade religiosa no sentido de
imunidade de coação externa para os difusores de erro.
Logo no início do parágrafo
seguinte, Leão XIII declara:
"Nada tem de comum esta
(liberdade cristã) com o espírito sedicioso e de desobediência: nem pretende
derrogar o respeito da autoridade pública, porque o poder humano tem o poder de
mandar e exigir obediência na medida em que não se aparte do poder divino e se
mantenha dentro da ordem estabelecida por Deus. Porém, quando o poder humano
manda algo claramente contrário à vontade divina, ultrapassa os limites fixados
e entra em conflito com a autoridade divina: donde é justo não obedecer (BAC,
ib. p. 252)".
Ora, seria de todo em todo
absurdo dizer que os liberais são contrários à liberdade religiosa no sentido
de imunidade de coação externa para a difusão das religiões falsas. Torna-se,
pois, claro que Leão XIII propõe aí aquela liberdade "legítima e
honesta" por ele mesmo descrita e defendida anteriormente na mesma
encíclica, em nome da qual podemos e em princípio devemos opor-nos às leis
injustas.
*
Essas considerações sobre o texto
da "Libertas" alegado pela "Dignitatis Humanae" tornam
fácil compreender também o verdadeiro sentido das demais passagens que a
Declaração conciliar cita no mesmo lugar.
Quando a "Mit Brennender
Sorge" reivindica, contra o nazismo, o direito do fiel de conhecer e
praticar a religião [6] o texto de fato não afirma que o erro goza de imunidade
na ordem civil. Aliás, seria inconcebível que, em quatro breve linhas,
pretendesse Pio XI defender uma noção católica nova de liberdade, em oposição
aos Papas anteriores. É evidente que aí se defende a liberdade "legítima e
honesta" de que fala Leão XIII. E é evidente que, da mesma forma como Leão
XIII proclamou, em nome dessa liberdade, o direito de resistir às leis injustas
e opressoras dos governos liberais, assim também Pio XI proclamou, em nome
dessa mesma liberdade, o direito de resistir ao nazismo.
E quando Pio XII, durante a
Segunda Guerra, numa simples frase reivindicou, entre os direitos fundamentais
da pessoa, "o direito ao culto de Deus, privado e público, compreendendo
também a ação religiosa da caridade [7]", o texto de sua Radiomensagem não
firmava — como já observamos a propósito da "Mit Brennender Sorge" —
o direito ao culto falso prestado a Deus numa religião não verdadeira. Pelo
contrário, seu sentido natural é de que ao homem se reconheça o direito de
prestar a Deus o culto verdadeiro, uma vez que esse é o culto devido a Deus.
Além disso, é evidente que Pio
XII não pretendia modificar a doutrina católica sobre a matéria, mas defendia
apenas a liberdade "legítima e honesta" tão claramente explanada por
Leão XIII. Tanto mais que o mesmo Pio XII, na alocução "Ci Riesce",
onde tratou "ex professo" da questão, nega qualquer direito ao que
não corresponde à verdade e à norma moral.
*
O mesmo se diga da passagem de
João XXIII citada pela "Dignitatis Humanae". Diz ela:
"Entre os direitos do homem
este também deve ser enumerado, que possa cultuar a Deus segundo a reta norma
de sua consciência, e professar a religião privada e publicamente (AAS, 1963,
p. 260)."
Como o texto diz "de acordo
com os retos ditames da própria consciência", e não "de acordo com os
ditames da própria consciência reta" (como quiseram alguns), torna-se
patente que João XXIII fala aí no mesmo sentido de Leão XIII na
"Libertas". Esta interpretação se impõe ainda mais claramente, se
consideramos que, esclarecendo o sentido do tópico indicado, João XXIII
transcreve, no próprio texto principal da "Pacem in Terris", uma
página de Lactâncio e uma de Leão XIII. A de Lactâncio se refere a
"prestar justas e devidas honras a Deus" [8], enquanto a de Leão XIII
é exatamente a mesma que comentamos acima ("Haec quidem vera, haec digna
filiis Dei libertas...")
*
Ao terminar este estudo, julgamos
oportuno desfazer uma objeção que se poderia formular da seguinte maneira:
A Declaração "Dignitatis
Humanae" foi aprovada pela maioria do Episcopado. Não estaria assim
garantida pelo carisma de infalibilidade, ou ao menos, como documento do
Magistério Ordinário, não obrigaria a todos os fiéis?
Respondemos com as observações
seguintes:
1. Como se declarou oficialmente,
o Concílio Vaticano II não teve intenção de fazer novas definições solenes.
Portanto, também a Declaração "Dignitatis Humanae" não está
chancelada com o carisma da infalibilidade inerente às definições solenes;
2. Não obstante, uma resolução
tomada pela maioria do Episcopado reunido em Concílio e aprovada pelo Sumo
Pontífice obriga a todos os fiéis, embora não venha com a chancela da
infalibilidade;
3. Essa obrigação, no entanto,
cessa, como acontece com a "Dignitatis Humanae", quando se verificam,
no mesmo caso, as duas condições seguintes:
a) é manifesto que o Episcopado
universal não teve a intenção de vincular de maneira definitiva às
consciências, e, ademais,
b) é também claro que semelhante
documento do Episcopado universal está em desacordo com uma doutrina já imposta
como certa pelo magistério ordinário de uma longa série de Papas.
(Transcrito de "Heri et
Hodie" no. 6 — Campos. Republicado em PERMANÊNCIA no. 182-183)
Notas:
[1] No mesmo sentido, veja-se
ainda: Pio VI, Carta "Quod aliquantum", in "La Paix intérieure des
Nations", Solesmes, p. 4-5; Enc. "Adeo Nota", ib. p. 7; Pio VII,
Carta Apost. "Post tam diuturnas", ib. p. 18/9; Gregório XVI, Enc.
"Mirari Vos", DS. 2731ss.; Pio IX, Enc. "Singulari Nos" in La Paix Int. des Nat. p.
29; Leão XIII, Enc. "Humanum Genus", in BAC, Doct. Pont. II, p. 168;
Enc. "Immortale Dei", ib. p. 193/4, 204/5, 207/8; S. Pio X, Carta
"Vehementer Nos", ib. p. 384/5; Pio XI, Enc. "Quas Primas",
ib. p.504; Carta "Ci é domandato", ib. vol. V, p. 125; Enc. "Non
abbiano bisogno", ib. II, p. 594; Pio XII, Carta ao Episc. Bras. AAS.
1950, p. 841.
Como se vê os Papas ensinaram
taxativamente que a propaganda das religiões falsas deve ser
"impedida", "reprimida" ("Ci Riesce"), se
necessáio portanto com coação externa. Assim sendo, não é apenas o erro,
abstratamente considerado, que carece de direitos ("Libertas", BAC,
p. 196; "Ci Riesce"), mas também as pessoas concretas que propagam o
erro em matéria religiosa ("Syllabus", prop. 78; Enc.
"Libertas", BAC, p. 196). Por outro lado, os Papas não condenaram
apenas a liberdade religiosa absoluta e ilimitada, que ofende a moralidade e a
ordem pública (Enc. "Libertas"). Mas declararam expressamente que é a
difusão do erro, enquanto tal, que deve ser impedida, mesmo nos casos em que
não prejudique a chamada ordem pública (Enc. "Quanta Cura" e
"Libertas"; e "Ci Riesce").
[2] Por ocasião dos debates
conciliares sobre a liberdade religiosa, certos autores tradicionalistas,
desejosos de dar uma explicação ortodoxa ao esquema, tentaram defender que, num
sentido ou noutro, os adeptos das religiões falsas gozam de verdadeiro direito
de praticar publicamente e de difundir sua religião. Registramos aqui duas
dessas tentativas.
O Pe. Marcelino Zalba, S.J.
defendeu que a consciência invencivelmente errônea gera direitos verdadeiros,
embora secundários, isto é, que cedem ante o direito superior do católico, que
possui a verdade objetiva e inteira (cfr. "Gregorianum", 1964, p. 94-102;
"Periodica", 1964, p. 31-67). Essa tese não nos parece condizente com
os princípios do direito natural, nem com os ensinamentos dos Papas anteriores.
O erro, como tal, não pode gerar verdadeiros direitos de categoria alguma, mas
apenas direitos putativos.
Mons. Temiño propôs a teoria
segundo a qual quem não conhece o catolicismo ou não está persuadido de sua
verdade, tem o direito de professar sua religião, na medida em que esta contém
o direito natural ou a ele não se opõe. Mas tal direito cede diante da religião
católica ("La
Conciencia y la Libertad Religiosa", Burgos, 1965, p.72). —
Uma análise aprofundada dessa posição excederia os limites que nos propusemos
neste estudo. Basta aqui observar que a teoria de Mons. Temiño não
justificaria, de modo algum, aquilo que é o ponto central da "Dignitatis
Humanae": a afirmação de um verdadeiro direito de imunidade de coação
externa para todas as religiões, em paridade de condições com a religião
católica.
[3] — Quais são os "devidos
limites" dentro dos quais há o "direito" de imunidade de coação
externa em matéria religiosa?
O assunto é tratado "ex
professo" no no. 7 da "Dignitatis Humanae"; o exercício da
liberdade religiosa não pode prejudicar a composição pacífica dos direitos de
todos os cidadãos, nem a honesta paz pública baseada na verdadeira justiça, nem
a moralidade pública.
De acordo com documentos de uma
série de Papas, vê-se que as religiões falsas não têm direito à existência nem
à propaganda. Não se pode, pois, falar de um direito verdadeiro à imunidade de
coação na ordem civil. Sendo assim, o problema dos limites de semelhante
direito é ocioso. Onde não há direito, não se põe a questão de seus limites.
Seja-nos lícito, no entanto,
observar que a "Dignitatis Humanae" propõe para a liberdade em
matéria religiosa os mesmos limites que a Declaração dos Direitos do Homem na
ONU estabelece para o exercício da liberdade de consciência e de religião, e
que se notam, mais ou menos, nas Constituições liberais das nações modernas,
inspiradas nos postulados da Revolução Francesa.
Ademais, merece aqui uma
referência especial a impostação pluralista da "Dignitatis Humanae",
que por sua natureza não se dirige apenas a católicos, mas orientará também não
católicos (governantes ou particulares) em matéria de liberdade religiosa. —
Assim sendo, quando ela fala em "composição pacífica de direitos", a
que direitos se refere? Pretende a "Dignitatis Humanae" pressupor
admitidos por todos, como norma do convívio, os postulados do direito natural?
A Declaração conciliar ganharia muito em dizê-lo claramente. Com efeito, dada a
amplidão com que a "Dignitatis Humanae" define a liberdade civil em
matéria religiosa, porque excluiria ela, por exemplo, a concepção que têm os
marxistas da religião? Em sentido
contrário, porque excluiria a concepção de "honesta paz pública",
"verdadeira justiça", que pregam por exemplo os governos liberais ou
os governos totalitários?
A indefinição da "Dignitatis
Humanae" quanto aos limites do "direito" de imunidade de coação
externa em matéria religiosa (direito esse que, ademais, não existe), é um
elemento que, na prática, vem favorecer certos movimentos heterodoxos em sua
luta contra a Santa Igreja.
[4] — Em aula conciliar, falando
em nome da Comissão do Secretariado para a União dos Cristão, Mons. de Smedt
declarou: "Libertas seu immunitas a coercitione, de qua agitur in
Declarationne non (...) agit de relationibus inter fideles et auctoritates in
Ecclesia" — A liberdade ou imunidade de coação, de que trata a Declaração,
não (...) trata das relação entre os fiéis e as autoridades na Igreja —
("Schema Declarationis de Libertate Religiosa", 1965, p. 25). Bem
sabemos a grande importância que têm essas palavras para a interpretação do
documento conciliar. No entanto, não podemos deixar de lamentar aqui a grande
confusão que certas expressões da "Dignitate Humanae" introduzem na
doutrina referente ao poder coercitivo da Igreja sobre seus súditos.
Por que o pensamento de Mons. de
Smedt não foi incluído no texto conciliar? Essa omissão, só de si, num texto
que visa tratar "ex professo" da imunidade de coação externa em
matéria religiosa e que analisa pormenorizadamente as conseqüências de tal
imunidade, leva o leitor naturalmente a pensar que também a Igreja não pode
exercer coação externa sobre seus súditos.
Ademais, a Declaração defende a
"liberdade social e civil" em matéria religiosa (subtítulo e passim).
Ora, a palavra "social", no seu sentido comum e mesmo técnico,
compreende a Igreja.
O texto conciliar propõe em
termos taxativos e universais o chamado "direito" à imunidade de
coação externa em matéria religiosa, que em sã lógica não se vê como
coaduná-los com o direito da Igreja de exercer coação sobre seus súditos (impor
penas, etc.). Pois, como poderia a Igreja contrariar um direito que é
apresentado com todas as características de um direito natural.
No número 1 de "Dignitatis
Humanae" lemos:
"Pariter vero profitetur
Sacra Synodus officia haec (religiosa) hominum conscientiam tangere ac vincire,
nec aliter veritatem sese imponere nisi vi ipsius veritatis, quae suaviter
simul ac fortiter mentivus illabitur" — "Professa igualmente o
Sagrado Sínodo que estes deveres (religiosos) tocam e ligam a consciência dos
homens, e que a verdade não se impõe de outra maneira que não por força da
mesma verdade, que penetra suave e fortemente nas almas".
No contexto, torna-se claro o
sentido: esses deveres tocam e vinculam apenas a consciência. Como pode, pois,
a Igreja, logicamente impor penas? E, se tomarmos as palavras em seu sentido
natural, como conciliar, por exemplo, as penas medicinais impostas pela Igreja,
com o princípio de que "a verdade não se impõe senão por força da própria
verdade"?
Como essa questão vai além dos
objetivos que nos propusemos no presente estudo, queremos aqui apenas indicá-la
brevemente, ressaltando o perigo que haveria em extenuar a doutrina sobre o
poder coercitivo da Igreja. A esse respeito, escreveu Leão XIII na Encíclica
"Libertas":
"Outros, como a Igreja
existe, não a negam, aliás não o poderiam, negam-lhe a natureza e os direitos
próprios de uma sociedade perfeita e afirmam que a Igreja não tem o poder
legislativo, judicial e coativo e que somente lhe compete uma função
exortativa, persuasiva, regendo os súditos levando-os a agir por persuasão
espontaneamente. Por esta opinião, esses tais falseiam a natureza desta
sociedade divina, extenuam e restringem sua autoridade, magistério e
eficácia" (BAC. ib. 256/7).
[5] — Sem dúvida, vários Papas
relacionaram a liberdade religiosa legítima e honesta com a dignidade humana
(cfr. Leão XIII, Enc. "Libertas"; Carta Apost. "Praeclara
Gratulationis", in "La
Paix Int. des Nat." Solesmes, p. 215/216; S. Pio X,
Carta Apost. "Notre charge" contra Le Sillon. Pio XI, Enc. "Quas
Primas"; Pio XII, Radiomensagem do Natal de 1944, item de 1949, aloc. ao
"Katholikentag" de Viena ("Catolicismo", no. 24, dez.
1952).
No entanto, esses Papas nunca
deduziram da dignidade humana qualquer direito para o mal ou para o erro; pelo
contrário, sempre ensinaram que a dignidade humana não é negada nem violentada
quando, nos casos devidos, se reprime o mal. Mais ainda: ensinaram que tal
repressão ao mal só contribui para o aperfeiçoamento dos indivíduos e das
sociedades — e, portanto, é até um postulado da dignidade humana entendida no
seu sentido autêntico.
Ao deduzir da dignidade humana um
verdadeiro direito de professar publicamente o erro em matéria religiosa, a
Declaração do Vaticano II situa-se em posição diversa da dos Papas anteriores.
E, doutrinariamente, situa-se em posição insustentável em sã lógica, pois, só
se conceberia que a dignidade humana fundamentasse um direito para o mal caso
esta de algum modo se encontrasse fora ou acima da própria ordem moral.
[6] — É o seguinte o texto da
Encíclica:
"Der glaubige Mensch hat ein
unverlierbares Recht, seinem Glauben zu bekennen und in den ihm gemussen Formen
zu betatigen. Gesetze, die das Bekenntnis un die Betagigund dieses
Glaubens unterdruken oder erschwerenn stehen in Widerspru mit einem
Naturgesetz" (AAS. 1937, p. 160) — "O crente tem um direito
inalienável de professar a sua fé e de praticá-la na forma que lhe convém.
Estas leis, que suprimem ou tornam difícil a profissão e a prática desta fé,
estão em oposição ao direito natural (em ital. AAS. 1937, p. 182).
[7] — São estas as palavras da
Radiomensagem de Pio XII que figuram na documentação apresentada ao Concílio:
ver opúsculo "Schema Declarationis de Libertate Religiosa", 1965, p.
19.
[8] — "Haec condicione
gignimur, ut generanti nos Deo justa et debita obsequia praebeamus, hunc solum
noverimus, hunc sequamur. Hoc vinculo pietatis obstriciti Deo et religati
sumus, unde ipsa religio nomen accepit". "Somos criados nesta
condição de prestar a Deus que nos cria justos e devidos obséquios, só a Ele
reconheçamos e o sigamos. Presos por este vínculo de piedade a Deus estamos
ligados, de onde a própria religião toma o nome". (AAS. 1963 p.
260/1).
Fontes: capela.org.br
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