Otavio Luiz Rodrigues Junior
A situação dos adventistas do sétimo dia (e dos judeus) e a alteração de data de concursos públicos marcados para sábados foi destacada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para exame em repercussão geral, nos autos do RE 611.874, de relatoria do ministro Dias Toffoli. Trata-se de matéria de grande relevância, tanto para os adeptos desses credos, quanto para a delimitação desse direito fundamental.
Na coluna da última semana, analisou-se a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH no caso
Eweida and Others v. the United Kingdom, de 15 de janeiro de 2013 [ECHR
12(2013)], no qual se afirmou a prevalência do princípio da não discriminação
indireta no âmbito da liberdade religiosa.[1]
É interessante
retomar esse assunto, pois, no mesmo julgamento, a Corte também apreciou duas
outras situações, uma delas bastante idêntica à pretensão da britânica Nadia
Eweida, ligadas ao problema da religião e sua manifestação nos ambientes
laborais.
Como exposto na coluna anterior,
Nadia Eweida era empregada da British Airways e foi suspensa por se recusar a
seguir o código de condutas da companhia, que não permitia o uso de símbolos ou
adereços religiosos, além do uniforme. Ela ostentava um crucifixo, de modo
visível, o que foi considerado pela empresa como uma quebra das normas
internas.
A decisão da Corte Europeia, que
contrariou o entendimento dos tribunais trabalhistas britânicos, favoreceu
Nadia Eweida e foi além da mera proibição de discriminações diretas à liberdade
religiosa, por definir que o empregador haveria ponderado inadequadamente o
conflito entre seu direito potestativo de ordenação das atividades de seus
empregados e a liberdade de exteriorizar a religião, especialmente por
inexistir norma protetiva específica no Direito interno.
A CEDH também examinou, no mesmo
julgamento, um recurso de Shirley Chaplin, uma enfermeira britânica de 56 anos,
que trabalhava no Royal Devon and Exeter Hospital. Após uma carreira de 30 anos
no hospital, a Sra. Chaplin foi advertida de que não poderia mais usar um
crucifixo durante suas atividades profissionais. Segundo o empregador, a
restrição baseava-se em normas internas, voltadas à proteção sanitária dos
pacientes. A enfermeira contra-argumentou que o cordão com a cruz era uma forma
de exteriorizar sua fé cristã. Ademais, a proibição tornava aparente a ideia de
que ela usava a cruz com o desiderato de pôr em risco a vida dos pacientes, o
que, na verdade, era uma simples forma de expressão de sua liberdade religiosa.
O hospital, que é uma instituição
de caráter público, também sustentou a tese de que seguira estritamente as
normas do Ministério da Saúde britânico, segundo as quais, para se minorar os
riscos de infecção hospitalar, o uso de joias por profissionais da saúde,
durante suas atividades, deve ser reduzido ao mínimo. Há proibição específica
para cordões, colares e piercings faciais. Os eventuais interessados em usar
roupas ou joias por razões de natureza religiosa ou cultural, nos termos do que
imposto pelo Ministério da Saúde, deveriam levar a questão a seu superior, o
qual poderia negar esse pedido, desde que fundado em motivos razoáveis.
A questão foi judicializada e os
tribunais trabalhistas britânicos rejeitaram a pretensão da enfermeira Chaplin.
Na instrução, provou-se que, por motivos de segurança e de saúde, outra
enfermeira cristã e dois enfermeiros Sikhs foram proibidos de usar joias
indicativas de suas religiões. Com a mudança dos uniformes em 2007, os quais
passaram a ter uma gola em V, a chefe de Shirley Chaplin pediu-lhe que
retirasse o crucifixo e daí nasceu a controvérsia.
Levada a questão à CEDH, o
julgamento foi contrário ao recurso de Shirley Chaplin. É conveniente realçar
que a Corte se valeu de uma técnica muito próxima da que o Tribunal
Constitucional Federal da Alemanha emprega em casos polêmicos: escolhem-se dois
recursos com elementos descritivos muito similares (como se dá com a pretensão
de Nadia Eweida e de Shirley Chaplin), mas com algum detalhe que os diferencia,
e, com base nessa diferença, chega-se a dois tipos diferentes de conclusões, o
que permite dilatar os fundamentos do acórdão para múltiplas hipóteses de fato.
Essa técnica é bem perceptível no acórdão da CEDH, pois são constantemente
comparados os recursos de Eweida e Chaplin.
Pode-se assim apresentar uma
resenha da fundamentação do acórdão quanto ao recurso de Shirley Chaplin:
1. As regras quanto ao uniforme
dos profissionais de saúde foram estabelecidas pelo governo e se pautaram por
critérios objetivamente aferíveis e razoáveis (segurança sanitária e dos
pacientes), além de estabelecerem alguma margem de discricionariedade para as
chefias imediatas, o que, a depender de argumentos e circunstâncias aceitáveis,
poderia abrandar o nível de restrição ao uso de objetos e adereços pessoais.
Ficou devidamente provado, nos julgamentos ocorridos na Justiça trabalhista,
que havia efetivo risco para os pacientes e para a enfermeira, se ela fosse
admitida a trabalhar com o crucifixo (v.g., algum paciente puxar o objeto; o
crucifixo entrar em contato com alguma ferida).
2. Não houve atitude
discriminatória em relação à enfermeira Chaplin, pois, diferentemente do caso
de Nadia Eweida, que comprovou o tratamento diferenciado (e mais favorável) em
relação a colegas de outras religiões, o hospital proibiu outros empregados
(cristãos e não cristãos) de usarem joias de caráter religioso. Ademais, como
forma de se evidenciar a ausência de caráter restritivo à expressão pública da
fé, o hospital abriu a possibilidade de que a enfermeira usasse um broche com
uma cruz, o que foi por ela recusado.
A CEDH, portanto, rejeitou as
teses de discriminação religiosa direta ou indireta, afastando-se, de maneira
sensível, das conclusões apresentadas no capítulo do acórdão relativo à
empregada da British Airways.
A fundamentação do acórdão, no
que se refere aos capítulos de Nadia Eweida e de Shirley Chaplin, é bastante
limitada. Em relação à primeira recorrente, a CEDH admitiu existir
discriminação indireta porque não houve ponderação adequada entre a liberdade
de expressão e o controle normativo (e potestativo) dos empregados. Quanto à
enfermeira do hospital público, a ponderação ocorreu e foi pautada pela
razoável colocação em preeminência da proteção sanitária. A complexidade da
questão exigiria, por certo, uma fundamentação mais sofisticada.
Como já se criticou nesta coluna,
em não poucas vezes, a CEDH não se constitui em uma fonte primorosa de
precedentes. Em muitos julgamentos, parece que o senso-comum ou uma tentativa
de se forjar um “consenso sobreposto europeu” substituem os critérios de
decisão baseados em técnicas analíticas (de matriz kelseniana ou hartiana) ou
argumentativas (radicadas nos estudos de Robert Alexy, para não citar outros
autores). A ponderação, no caso Eweida and Others v. the United Kingdom, mais
pareceu um recurso retórico do que um meio eficaz de persuasão racional e de
legitimidade dos resultados do acórdão. Dito de outro modo, se comparados os
capítulos Eweida (discriminação indireta) e Chaplin (ausência de discriminação
direta ou indireta), ter-se-á um desenho mais consequencialista do que
propriamente um perfil argumentativo.
Essa crítica foi também formulada
quanto à fundamentação do acórdão Leyla Sahin v. Turkey, de 10 de novembro de
2005. Nesse julgado, a CEDH manteve decisão do Tribunal Constitucional da
Turquia, que considerou a proibição do uso do véu islâmico nas universidades
locais, então em vigor naquele país, era compatível com o direito fundamental à
liberdade religiosa. Conforme aponta Raphael Peixoto de Paula Marques, em
erudito estudo sobre o caso, a CEDH “concluiu que as autoridades turcas
estariam melhor habilitadas para realizar esse balanceamento de direitos
fundamentais, já que ‘não é possível discernir através da Europa uma concepção
uniforme do significado da religião na sociedade’”.[2]
Sopesar, balancear ou ponderar, a
despeito da diferença entre essas operações, até por sua concepção teórica
diversificada, ora tributárias a Robert Alexy, ora encontráveis em Ronald Dworkin , em
muitos casos são meros simulacros de um decisionismo consequencialista ou, o
pior, populista, como tem apontado com elegância Néviton Guedes, em suas
colunas neste espaço.
É de se recordar que o Plenário do STF, no julgamento do STA 389 AgR, relator ministro Gilmar Mendes, em juízo delibatório, deu preeminência ao princípio da isonomia em face da liberdade religiosa de estudantes de fé mosaica, que pretendiam alterar a data do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a fim de que se preservasse o descanso do Shabat.[3]
É óbvio que o tipo de procedimento (suspensão de tutela antecipada)
e a forma (declaradamente) perfunctória da apreciação da controvérsia não
permitem dilatar as conclusões desse julgado e dele extrair o pensamento da
Corte sobre o tema. Ademais, examinando-se o objeto da demanda, fica nítido que
não se discutiu a tese da não discriminação indireta, tão relevante para a
solução de Eweida and Others v. the United Kingdom.
O primado da não discriminação
indireta deve ser também considerado nas controvérsias sobre os limites da
liberdade religiosa. O caso Eweida and Others v. the United Kingdom é uma
importante contribuição para esse debate, especialmente por fornecer duas
diferentes soluções, com elementos descritos muito aproximados. Só se espera
que o STF não caia na armadilha da utilização da técnica de ponderação para
esconder uma decisão consequencialista ou principialista, sem compromissos mais
sérios com o exame crítico da coerência de suas conclusões.
[1] Disponível em
http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-115881. Acesso em
15-1-2013.
[2] MARQUES, Raphael Peixoto de
Paula. Quem tem direito ao uso do véu? Secularismo e liberdade religiosa em Sahin V. Turquia.
Revista General de Derecho Constitucional. v. 15, p. 1-20, 2012.
Disponível em
http://www.iustel.com/v2/revistas/detalle_revista.asp?id_noticia=412522. Acesso
em 20.1.2013.
[3] STA 389 AgR, Relator(a): Min.
Gilmar Mendes (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2009, DJe-086
14-05-2010. RT v. 99, n. 900, 2010, p. 125-135. Essa argumentação também foi
utilizada pelo STJ, em acórdão mais antigo: “O concurso público subordina-se
aos princípios da legalidade, da vinculação ao instrumento convocatório e da
isonomia, de modo que todo e qualquer tratamento diferenciado entre os
candidatos tem que ter expressa autorização em lei ou no edital. O
indeferimento do pedido de realização das provas discursivas, fora da data e
horário previamente designados, não contraria o disposto nos incisos VI e VIII,
do art. 5º, da CR/88, pois a Administração não pode criar, depois de publicado
o edital, critérios de avaliação discriminada, seja de favoritismo ou de
perseguição, entre os candidatos” (STJ.RMS 16.107/PA, Rel. Ministro Paulo
Medina, Sexta Turma, julgado em 31/05/2005, DJ 01/08/2005, p. 555)
Fontes: Revista Consultor Jurídico
Google Imagens
Nenhum comentário:
Postar um comentário