PARECER
A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, dentre o rol de atribuições legais de sua incumbência, sustenta como finalidades a defesa da Constituição, da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e da justiça social, bem como pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas, conforme enumerado no artigo 44, inciso I, da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil). À face destas considerações, e conforme consulta e pedido de apreciação apresentados pela Psicóloga Marisa Lobo Franco Ferreira Alves a esta Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB/PR, aos oito dias de março de 2012, acerca do alegado cerceamento do exercício da liberdade religiosa no desempenho da profissão, manifesta-se a aludida Comissão nos termos seguintes:
Em 09 de fevereiro de 2012 o
Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-08) formalizou notificação
endereçada à consulente, Psicóloga com inscrição ativa junto à referida
autarquia sob o nº 7512, correlativamente ao estabelecimento da retirada, no
prazo de 15 (quinze) dias, de informações do seu blog marisalobo.blogspot e do
seu twitter @marisa_lobo que vinculassem o exercício da sua profissão à sua
convicção religiosa. O teor da notificação supramencionada foi fundamentado no
artigo 2º, alíneas b e f do Código de Ética Profissional do
Psicólogo: Texto integral disponível em:
http://www.crppr.org.br/editor/file/legislacao/codigo_de_etica.pdf>. Acesso
em: 15/03/2012.
Art. 2º – Ao psicólogo é vedado:
(...)
b) Induzir a convicções
políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual
ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções
profissionais;
(...)
f) Prestar serviços ou vincular o
título de psicólogo a serviços de atendimento psicológico cujos procedimentos,
técnicas e meios não estejam regulamentados ou reconhecidos pela profissão.
A apreciação do caso em pauta invoca,
necessária e previamente, a contemplação da liberdade religiosa na
peculiaridade do seu conteúdo, eis que sua noção não se esgota na livre
escolha, pelo indivíduo, da sua própria religião. Esta liberdade demanda uma
série de elementos fundamentais, do que resulta também incluso, no seu âmago,
um leque de outros direitos inerentes a este bem jurídico principal: a crença, albergada ora pela livre escolha
da posição confessional a que se vai aderir, ora pela opção de mudança desta
posição confessional em favor de outra – ou mesmo de nenhuma, no caso de
inclinação ao ateísmo ou ao agnosticismo; o culto,
consubstanciado na exteriorização da crença mediante manifestações de caráter
litúrgico; e as liberdades de organização e de manifestação religiosas, a
primeira no sentido de organizar-se uma crença e o seu culto de forma
institucionalmente constituída, e a segunda no sentido de consolidar a
expressão pessoal da fé. (Ver SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.
34. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2011; LAFER, Celso. Ensaios sobre a Liberdade. São Paulo:
Perspectiva, 1980; BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,
2004, vol. II).
O teor do
artigo 2º, alínea b do Código de
Ética Profissional do Psicólogo aduz claramente à vedação do proselitismo no exercício desta
profissão, nada obstante tratar-se o proselitismo de uma das formas de
expressão pessoal da fé, e, portanto, de integrar a essência da liberdade
religiosa em sentido amplo. Em termos conceituais, e muito embora a questão
suscite uma complexidade tal que torne praticamente inviável qualquer tentativa
de unicidade neste sentido, o proselitismo pode ser concebido como a adoção de
comportamentos idôneos à aquisição do consentimento e da adesão de outros à
própria religião e à comunidade em que esta eventualmente se exprime, ou ainda,
como um conjunto de comportamentos dirigidos de dentro da comunidade dos
crentes para fora dela, com a finalidade de convidar outros indivíduos a
aderirem àquela religião. (Conforme
WEINGARTNER NETO, Jayme. Liberdade
Religiosa na Constituição: fundamentalismo, pluralismo, crenças, cultos.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 117.)
Em nota
pública de esclarecimento à sociedade e aos Psicólogos sobre Psicologia e
religiosidade no exercício profissional, (Nota
de esclarecimento disponível em: .
Acesso em: 08/03/2012) emitida em 28/02/2012, o Conselho Federal de
Psicologia se posicionou no sentido de que
Não existe oposição entre
Psicologia e religiosidade, pelo contrário, a Psicologia é uma ciência que
reconhece que a religiosidade e a fé estão presentes na cultura e participam na
constituição da dimensão subjetiva de cada um de nós. A relação dos indivíduos
com o “sagrado” pode ser analisada pela(o) psicóloga(o), nunca imposto por
ela(e) às pessoas com os quais trabalha.
À baila destas
exposições, verifica-se descabida a invocação da prática do proselitismo para o
estabelecimento das mencionadas restrições e das sanções previstas no artigo 21
e alíneas do Código de Ética Profissional do Psicólogo, bem como do artigo 27,
incisos I a V, da Lei Federal nº 5.766/71 – que criou o Conselho Federal e os
Conselhos Regionais de Psicologia –, à consulente. Isso porque a motivação da
notificação recebida pela Psicóloga Marisa Lobo Franco Ferreira Alves se
edificou sobre a sua assunção expressa do Cristianismo como convicção religiosa
junto aos seus sítios virtuais, onde também é divulgada a sua atividade
profissional. O fato é que, neste caso, não se encontra configurada a prática
do proselitismo pela consulente, pois em momento algum restou comprovada a
convocação de pacientes com o intuito de convertê-los à fé professada por ela.
Definitivamente, o teor da liberdade de manifestação religiosa exercida pela
consulente compreende contornos inerentes à sua afirmação pública de possuir
uma crença – afirmação esta que, aliás, é o cerne de proteção deste bem
jurídico.
Convém
considerar, entrementes, que muito embora seja o proselitismo uma das
expressões da liberdade religiosa – e, portanto, bem jurídico
constitucionalmente defendido –, a sua limitação no artigo 2º, alínea b do Código de Ética Profissional do
Psicólogo não configura inconstitucionalidade, tendo-se em vista a admitida
relativização das liberdades cujo exercício indiscriminado poderia culminar na
supressão das liberdades alheias. (Esta
relativização possui matriz kantiana, eis que o princípio universal da justiça
foi caracterizado por Immanuel Kant como sendo aquele cuja ação “for capaz de
coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, ou se na
sua máxima a liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a liberdade de
todos de acordo com uma lei universal.” In KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução de Edson Bini. Bauru: EDIPRO,
2003, p. 76-77.) Esta posição se clarifica de forma contundente a partir da
preleção de que as liberdades precisam ser asseguradas em sua integralidade,
até onde não configurarem padrões ofensivos à coletividade. (Vide MIRANDA, Francisco Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade: os
três caminhos. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller,
2002, p. 378.) Neste sentido, o entendimento do Supremo Tribunal Federal é
claro e contundente:
Os direitos e
garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema
constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter
absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências
derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que
excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas
restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados
os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional
das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão
sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre
elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a
integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência
harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em
detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de
terceiros. MS 23.452, Rel. Min. Celso de
Mello, julgamento em 16-9-1999, Plenário, DJ de 12-5-2000
À luz desta questão,
analogicamente admite-se a limitação do exercício do proselitismo na constância
da atividade da Psicologia, considerando que a muitas vezes evidenciada
situação de vulnerabilidade subjetiva do paciente poderia conceder margem a uma
eventual imposição confessional por parte do Psicólogo. Entrementes, não se
verifica esta situação no caso aqui avaliado, pois simplesmente assumir-se
publicamente como adepto de um determinado credo não significa transpor o
respectivo discurso religioso para a metodologia procedimental adotada
profissionalmente.
Neste caso,
entende-se que o ato administrativo consubstanciado na notificação endereçada à
Psicóloga Marisa Lobo Franco Ferreira Alves padece de vício de
inconstitucionalidade material, eis que tanto sua motivação quanto sua
finalidade agridem frontalmente, na essência desta análise, o princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana, exaltado no artigo 1º, inciso III da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, bem como os
dispositivos constitucionais corroborados no artigo 5º, incisos VI e VIII. Ao
fundamentar sua pretensão com dispositivo regulamentar incompatível com a real
situação fática, (Sublinha-se, em termos
jurídico-administrativos, que validade um de um ato jurídico reside na sua
compatibilidade, sobretudo no tocante à sua causa e á sua finalidade, com o
modelo normativo proposto pela norma que o fundamenta. Vide JUSTEN FILHO,
Marçal. Curso de Direito Administrativo.
5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 328-33.) de modo a ajustar
justificativa à subordinação da continuidade do exercício da profissão de
Psicóloga, pela consulente, à ocultação da sua crença religiosa, o Conselho
Regional de Psicologia do Paraná manifestamente afirmou-se supraconstitucional,
circunstância inadmissível especialmente em se tratando de ato emanado de
entidade autárquica da Administração Pública Indireta. (Per si, a própria norma geral acerca da existência e da criação das
autarquias encontra-se contida em preceito constitucional (artigo 37, inciso XIX),
vinculando-se, portanto, integral e diretamente a este.)
Em suma, e
muito embora a aludida limitação do Código de Ética Profissional do Psicólogo
não culminar no padecimento do documento por vício de inconstitucionalidade
material parcial, o ato administrativo perpetrado pelo Conselho Regional de
Psicologia do Paraná contra a consulente é indubitavelmente inconstitucional,
pois de forma clara descortina a indevida utilização de um instituto jurídico
de natureza conceitual diversa – o proselitismo – à conduta da Psicóloga Marisa
Lobo Franco Ferreira Alves, com o fito de cerceamento do seu direito inabalável
de assumir publicamente sua fé.
Ainda a
respeito do Código de Ética Profissional do Psicólogo, verifica-se em sua Apresentação,
in verbis:
A missão primordial de um código
de ética profissional não é de normatizar a natureza técnica do trabalho, e,
sim, a de assegurar, dentro de valores relevantes para a sociedade e para as
práticas desenvolvidas, um padrão de conduta que fortaleça o reconhecimento social
daquela categoria.
Códigos de Ética expressam sempre
uma concepção de homem e de sociedade que determina a direção das relações
entre os indivíduos. Traduzem-se em princípios e normas que devem se pautar
pelo respeito ao sujeito humano e seus direitos fundamentais. Por constituir a
expressão de valores universais, tais como os constantes na Declaração
Universal dos Direitos Humanos; sócio-culturais, que refletem a realidade do
país; e de valores que estruturam uma profissão, um código de ética não pode ser
visto como um conjunto fixo de normas e imutável no tempo. As sociedades mudam,
as profissões transformam-se e isso exige, também, uma reflexão contínua sobre
o próprio código de ética que nos orienta. (p. 05)
(...)
Este Código de Ética pautou-se
pelo princípio geral de aproximar-se mais de um instrumento de reflexão do que
de um conjunto de normas a serem seguidas pelo psicólogo. Para tanto, na sua
construção buscou-se:
(...)
b. Abrir espaço para a discussão,
pelo psicólogo, dos limites e interseções relativos aos direitos individuais e
coletivos, questão crucial para as relações que estabelece com a sociedade, os
colegas de profissão e os usuários ou beneficiários dos seus serviços. (p. 06)
Outrossim, ao
expor seus Princípios Fundamentais, o Código de Ética Profissional em tela
dispõe, em seu item I, que “O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na
promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser
humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos
Humanos.” Nota-se, portanto, que o teor do Código de Ética Profissional do
Psicólogo se mostra paradoxal quando, ao exaltar ao largo do seu texto a
interdisciplinaridade da profissão e a generalidade e amplitude hermenêuticas
do corolário do respeito e da promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade
e da integridade do ser humano, aduz às vedações expressas na alínea f do seu artigo 2º e às limitações da
alínea c do seu artigo 20. (“Art. 20 – O psicólogo, ao promover
publicamente seus serviços, por quaisquer meios, individual ou coletivamente:
(...) c) Divulgará somente qualificações, atividades e recursos relativos a
técnicas e práticas que estejam reconhecidas ou regulamentadas pela
profissão”.)
A incoerência
destas disposições repousa efetivamente sobre o fato de que, na concretude da
situação aqui apresentada, o respeito à liberdade religiosa da Psicóloga Marisa
Lobo Franco Ferreira Alves no âmbito de sua profissão ficaria subordinado à
prévia e pretensamente autossuficiente regulamentação administrativa deste bem
jurídico, cuja complexidade desafia diuturnamente os operadores do Direito e
das demais áreas do saber humano ao debate e à infindável teorização.
Conjuntamente
ao Código de Ética Profissional do Psicólogo, a Lei Federal nº 4.119/62, que dispõe
sobre os cursos de formação em Psicologia e regulamenta a profissão de
Psicólogo, preconiza em
seu Capítulo III (Dos direitos conferidos aos diplomados),
artigo 13, parágrafo 2º, que “É da competência do Psicólogo a colaboração em
assuntos psicológicos ligados a outras ciências”, o que claramente referencia o
caráter interdisciplinar do exercício da profissão. Neste ínterim, o documento
intitulado Atribuições Profissionais do
Psicólogo no Brasil, (Inteiro teor
disponível em: .
Acesso em: 20/03/2012.) concluído em 17 de outubro de 1992 em contribuição
do Conselho Federal de Psicologia ao Ministério do Trabalho para integrar o
Catálogo Brasileiro de Ocupações, estabelece que o profissional da Psicologia,
“dentro de suas especificidades profissionais, atua no âmbito da educação,
saúde, lazer, trabalho, segurança, justiça, comunidades e comunicação com o
objetivo de promover, em seu trabalho, o respeito à dignidade e integridade do
ser humano.” Por conseguinte, ao caracterizar as competências a serem
desempenhadas pelos Psicólogos Sociais – categoria profissional na qual se
enquadra a consulente –, o documento supracitado preceitua:
O psicólogo social é aquele que
entende o sujeito desde uma perspectiva histórica considerando a permanente
integração entre indivíduo e o social. Neste sentido operar como psicólogo
social significa desenvolver um trabalho desde esta perspectiva de homem e da
sociedade, possibilitando atuar em qualquer área da Psicologia.
Detalhamento das Atribuições
1- Promove estudos sobre
características psicossociais de grupos étnicos, religiosos, classes e
segmentos sociais nacionais, culturais, intra e interculturais. (grifado no original)
Enquanto
fenômeno que adentra de forma abrangente e contundente nas esferas mais
subjetivas da consciência humana, e, simultaneamente, manifestando-se em
grandes movimentos coletivos, tem-se que a plena realização do direito à
liberdade religiosa depende não apenas do direito de exprimir a crença, mas de
uma autodeterminação existencial a partir dela. E esta premissa impõe que o
intérprete sempre considere haver uma unidade essencial entre crença e conduta.
(Segundo MACHADO, Jonatas Eduardo Mendes.
Liberdade Religiosa numa Comunidade
Constitucional Inclusiva - dos direitos da verdade aos direitos dos
cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 222.) Por fim, uma atitude
geral de respeito resulta do reconhecimento da liberdade dos indivíduos de
conformar a sua personalidade e de reger a sua vida e os seus interesses,
respeito esse que deve converter-se ora em abstenções, ora em ações do Estado e
das suas entidades públicas a serviço da realização da pessoa, individual ou
institucionalmente considerada, mas nunca em substituição da ação ou da livre
decisão dos indivíduos, nunca a ponto de o Estado penetrar na sua personalidade
e afetar negativamente o seu ser. (MIRANDA,
Jorge. Manual de Direito Constitucional.
Coimbra: Coimbra Editora, 2000, tomo IV, p. 110.)
Em termos
tais, posiciona-se a Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB/PR no
sentido de considerar abusiva e inconstitucional a notificação administrativa
encaminhada à consulente pelo Conselho Regional de Psicologia do Paraná, bem
como entender consequentemente inaplicáveis as sanções administrativas a ela
eventualmente impostas neste sentido, eis que sua conduta – afirmação pública
de possuir uma crença – não se subsume ao teor normativo invocado pela referida
autarquia – proselitismo – para fundamentar a notificação em tela.
Fonte: www.acyrdegerone.blogspot.com.br
Fonte: www.acyrdegerone.blogspot.com.br
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